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Youssef Bouguerra (Foto: LinkedIn)
Se você já se deparou com um projeto de TI que parece complicado demais para avançar, não está sozinho. Muitos projetos param porque não se sabe por onde começar, e as metodologias tradicionais simplesmente não funcionam nesses casos. Este texto oferece uma abordagem prática para destravar esses projetos "complicados", que envolvem múltiplas áreas, tecnologias legadas e conhecimento fragmentado.
Aqui, você encontrará estratégias para alinhar sua equipe, revisar estruturas organizacionais e identificar prioridades estratégicas, preparando o terreno para que seu projeto finalmente saia do papel e avance de maneira estruturada. Se você está lidando com um desafio assim, este conteúdo foi feito para você!
Quantos projetos de TI não saem do papel porque não se sabe por onde começar? Eu defendo que existe uma classe de projetos “complicados”, com características bem definidas, que têm maior probabilidade de nunca ver a luz, ou seja, de fracassar, justamente porque não se sabe por onde começá-los.
O executivo responsável fica receoso – sua reputação, até mesmo sua carreira, podem estar em jogo. Melhor não brincar com fogo, e deixar o projeto bem engavetado... Como consequência, a organização não tira proveito dos benefícios que o projeto traria, e perde em eficiência e competitividade. Um executivo um pouco mais corajoso pode até arriscar uma lean inception ou alguma outra abordagem tradicional, mas – com estes projetos “complicados” – ficará frustrado.
Neste artigo, trago a noção de projeto “complicado” a partir de exemplos reais, destacando as características que têm em comum e que contribuem para torná los mais desafiadores. Na sequência, explico por que as metodologias ágeis tradicionais tais como lean inception ou product discovery não são efetivas para destravar esses projetos. E, por fim, apresento os alicerces da “Complex Discovery”, a metodologia desenvolvida pela Newstart especificamente para essas situações.
Alguns exemplos de projetos “complicados”
A definição da Oxford Languages de “complicado” é:
adjetivo
1. composto de elementos que entretêm relações numerosas, diversificadas e difíceis de apreender pelo espírito.
2. que é excessivo, extravagante ou confuso.
3. MEDICINA: que apresenta complicação (diz-se de evolução de doença).
É no sentido número 1 (e no número 3 também, como veremos mais adiante) que uso o adjetivo “complicado” neste artigo: projetos compostos de elementos (áreas organizacionais, partes envolvidas, elementos de linguagem, tecnologias, etc.) que entretêm relações numerosas, diversificadas e difíceis de apreender pelo espírito (difícil de se desenhar uma visão do todo, de alinhar as partes envolvidas e de ter um conhecimento uniforme entre todos).
Na tabela a seguir, listo alguns exemplos de projetos “complicados”, junto com alguns elementos de contexto e o que os torna mais desafiadores:
Ao longo do texto, usarei o caso do projeto de eliminação de discrepâncias de preços, um projeto real da minha vivência numa grande empresa de tecnologia, como fio condutor para ilustrar os principais conceitos trazidos. Um outro projeto real tirado da minha experiência no Rabobank é resumido aqui.
O que esses projetos “complicados” têm em comum?
Em primeiro lugar, vale ressaltar que estamos falando aqui de projetos mesmo, não de produtos. Os projetos “complicados” visam resolver um problema específico, com início, meio e fim bem definidos, e expectativas bem delineadas dentro de restrições de prazo e de orçamento. O desenvolvimento de produtos, por outro lado, tem características diferentes baseadas na geração contínua de valor para usuários ou clientes, o que deixa o campo mais livre para experimentação. Os projetos “complicados” são projetos, distantes da realidade de gestão de produtos.
Um segundo aspecto comum a esses projetos “complicados” é que eles apresentam um baixo nível de inovação. Não se trata de mudar radicalmente a forma de operar da organização – trata-se, em vez disso, de corrigir alguma pequena disfunção, como é o caso no projeto de eliminação de discrepâncias de preços.
A organização convive com o que pode ser comparado a uma doença crônica, aparentemente inofensiva, que resulta em uma diferença de 2 ou 3 centavos entre o preço cotado e o preço cobrado do cliente. Tornou-se normal, e é por isso que ninguém libera orçamento para resolver o problema. Mas se por acaso for feita uma análise do impacto deste pequeno delta sobre a satisfação e a retenção dos clientes, o projeto “complicado” vira prioridade, e tem de ser encarado de frente. A doença não é tão inofensiva assim (lembra o significado número 3 de “complicado”) ...
Observamos também que em todos esses casos, múltiplas áreas organizacionais estão envolvidas, e muitas vezes entram em conflito entre si. Ainda no exemplo das discrepâncias de preços, as regras de cálculo de tributos empregadas pelas áreas de Pré-Vendas e de Vendas podem divergir pelo fato de serem aplicadas por sistemas distintos em uso por muitos anos, de forma que ninguém saiba ao certo quais são essas regras de cálculo. Cada área tem sua caixa preta, e defende sua verdade como sendo absoluta. Ninguém tem orçamento, recursos ou coragem para abrir a caixa preta que funciona tão bem há tanto tempo, até que se descubra que a doença não é tão inofensiva assim!
Muitas vezes os projetos “complicados” envolvem tecnologias antiquadas, como vimos acima, sobre as quais há pouco controle e pouco conhecimento. Já vi um sistema de gestão de ordens em uso por mais de 20 anos, com uma equipe (cara) de manutenção tão ocupada a “manter” o sistema que não sobra capacidade para desenvolver novas funcionalidades, nem corrigir defeitos existentes há décadas. A tecnologia, em si, é um problema, mas o problema maior é a falta de conhecimento sobre as regras de negócios que ela implementa.
Faz tempo que os primeiros desenvolvedores que trabalharam no sistema saíram da empresa, e a equipe existente, com um orçamento cada vez mais , tem dificuldade para manter o barco à tona.
Nos projetos “complicados”, a questão do conhecimento é problemática além da tecnologia. Ninguém na organização tem a visão do todo, em termos estratégicos. No campo do problema (discrepâncias de preços, para manter o mesmo exemplo), o conhecimento dos processos de cada área é concentrado nas áreas específicas.
E cada área, naturalmente, usa sua própria linguagem, de forma que a comunicação entre as áreas se torne mais difícil, e propensa a conflitos. Para a área de Pré-Vendas, 5% de desconto pode significar o percentual de desconto aplicado em cima do preço bruto, enquanto a área de Vendas possa entender que seja o percentual aplicado em cima do preço líquido. Sem a visão do todo e um campo semântico unificado, o problema é realmente “complicado” para resolver.
Por que Lean Inception e outras metodologias não ajudam?
Quero deixar claro, de início, que sou fã das lean inceptions, apesar de acreditar que não se aplicam aos projetos “complicados” que estamos debatendo aqui. Tive o privilégio de participar de várias inceptions facilitadas pelo próprio Paulo Caroli, o idealizador da metodologia, na época em que trabalhávamos juntos na Thoughtworks em Porto Alegre.
Todas foram experiências iluminadoras. No seu blog, Caroli define a lean inception como “a combinação eficaz do Design Thinking e do Lean StartUp para decidir o Produto Mínimo Viável, em Inglês Minimum Viable Product (MVP). É um workshop dividido em várias etapas e atividades que irão direcionar a equipe na construção do produto ideal.
A construção de qualquer projeto sempre começa com uma Lean Inception.” É nítido, então, que a lean inception é voltada para a ideação de produtos – enquanto estamos falando aqui de projetos com início, meio e fim. Em outra postagem, Caroli acrescenta: “Agora, se o seu projeto tem pouca inovação, mas muito impacto no negócio, essa é a sua `vaca leiteira´, que são os produtos já existentes que não exigem mudanças, mas que continuam sendo importantes para o negócio. Nesse caso, não faça uma Lean Inception.
Não estresse a sua vaca leiteira que está trazendo sustento para a sua empresa pois, ao tentar mudá-la, ela pode parar de produzir leite. Talvez você possa fazer uma inception não para a parte da eficácia do leite, mas para a eficiência operacional da vaca leiteira.” Estamos de acordo.
Outras metodologias, tais como product discovery, design thinking, lean startup e outras, também fazem parte do campo do desenho de produtos (não de projetos), onde se busca um alto grau de inovação. No caso dos projetos “complicados”, o nível de inovação é baixo e o que temos para resolver é essencialmente um problema técnico. Um problema técnico “complicado”!
A tabela a seguir resume as principais características das metodologias citadas acima – agreguei o conceito de “Complex Discovery” que defendo aqui para fins de comparação.
Complex Discovery
Figura 1: Os alicerces da Complex Discovery
Tirar aquele projeto “complicado” do papel, e obter êxito na sua execução, exige um trabalho de consultoria especializada que chamo de “Complex Discovery”. Em contraste com a definição de “complicado” na abertura do artigo, a Oxford Languages define “complexo” como:
adjetivo
1. diz-se de ou conjunto, tomado como um todo mais ou menos coerente, cujos componentes funcionam entre si em numerosas relações de interdependência ou de subordinação, de apreensão muitas vezes difícil pelo intelecto, e que ger. apresentam diversos aspectos.
Enquanto tratamos de projetos “complicados”, a metodologia para abordá-los é “complexa” no sentido que traz componentes (os alicerces que veremos mais adiante) com relações de interdependência entre si, formando um todo mais ou menos coerente. O conjunto ajuda a fazer sentido do que pode ser de difícil apreensão pelo intelecto. Em outras palavras, creio que as soluções para os problemas “complicados” podem ser encontradas a partir de abordagenscomplexas onde há espaço para a ambiguidade (“um todo mais ou menos coerente”).
As ferramentas de trabalho a serem empregadas na Complex Discovery são aquelas mesmas que você pode imaginar em qualquer consultoria: entrevistas individuais, reuniões de trabalho em grupo, workshops, análise de documentos existentes, observação... O real diferencial da metodologia “Complex Discovery” reside nos seus alicerces, aprendidos ao longo de décadas de prática, e que detalho a seguir. Não se trata de um processo, mas de um conjunto de exercícios de reflexão que podem ser conduzidos em paralelo ou de maneira sequencial com o objetivo de entender profundamente o cerne do problema.
a. A visão do todo
Obter a visão do todo da questão exige muitas conversas com muita gente, e muita paciência também, para poder mapear de maneira detalhada o contexto do problema. Perguntas encadeadas do tipo “os cinco por quês”, emprestadas da metodologia de análise de causa raiz (Root Cause Analysis, em inglês), podem ser muito úteis. A ideia é entender exatamente onde estamos pisando. No nosso exemplo de discrepâncias de preços, o desafio seria de ter respostas suficientemente detalhadas às seguintes perguntas, entre outras:
Quais são as áreas envolvidas?
Quem são os principais protagonistas?
Qual papel cada área desempenha?
Quais motivos históricos explicam o papel de cada área?
Quais dificuldades cada área enfrenta?
Como as áreas se relacionam entre si?
Quais conflitos, abertos ou encobertos, são subjacentes?
Quais são os sistemas envolvidos?
Qual o grau de controle sobre cada sistema envolvido?
Por que o projeto é importante (ou seja, por que tem verba)? Por que agora?
Documentar os principais insights deste trabalho e compartilhá-los com alguns executivos da empresa cliente, a fim de validá-los, é uma boa ideia, desde que as implicações políticas de tal ato sejam ponderadas.
b. Uma linguagem única
Como vimos antes, assegurar que todas as áreas envolvidas estejam no mesmo plano semântico é crucial para não ampliar os desalinhamentos. O primeiro desafio é identificar potenciais divergências inconscientes, como no caso do desconto que pode se aplicar tanto ao preço bruto quanto ao preço líquido. Longas conversas e ter a visão do todo são pré-requisitos para apontar a tais divergências.
Na minha experiência, construir artefatos visuais e/ou amigáveis ao usuário e disseminá-los amplamente no âmbito da equipe do projeto é a melhor maneira de unificar a linguagem e alinhar as diferentes partes envolvidas. Artefatos que usei com proveito no ado incluem mapas de processos, cadeias de valor, glossários de termos, documentos de arquitetura de alto nível, e documentos de requisitos. Sugiro, entretanto, avaliar cada situação de maneira única, e usar a criatividade para construir os artefatos que serão mais efetivos.
c. As estruturas organizacionais
Ao entendermos os motivos históricos que explicam o papel de cada área no processo, conseguimos vislumbrar a realidade competitiva da organização na época em que as áreas e os processos foram criados. É certo que no dia de hoje, as coisas mudaram, o que explica as dificuldades enfrentadas, os desalinhamentos e os conflitos.
Penso num ciclo vicioso: as áreas não estão alinhadas porque a organização está defasada, ao mesmo tempo que o projeto “complicado” tem dificuldade para iniciar porque as áreas estão desalinhadas! Logo, é nítido que a revisão das estruturas organizacionais frente à nova realidade competitiva é crucial para ter sucesso na empreitada.
As decisões devem ser alimentadas pelos aprendizados colhidos no trabalho de consultoria preliminar, lembrando a famosa citação do Ben Horowitz no seu excelente O Lado Difícil das Situações Difíceis: “A primeira regra do design da organização é que nenhum deles é bom. Todo design otimiza a comunicação entre certas divisões da organização à custa de outras divisões. [...] Priorize os fluxos mais importantes de comunicação e de decisão. [...] Lembre que essas prioridades serão baseadas na situação atual. Se ela mudar, você poderá reorganizar a empresa.”
d. As reais prioridades do projeto
Retomando nosso exemplo de discrepâncias de preços, é muito provável que as causas das divergências sejam múltiplas. Supondo, de maneira hipotética, que a gente tenha identificado três causas-raiz para as discrepâncias:
Causa 1: Desconto aplicado em cima do preço líquido na cotação, e em cima do preço bruto na ordem de venda;
Causa 2: O sistema X busca o valor do ICMS no sistema A, enquanto o sistema Y busca o mesmo valor no sistema B;
Causa 3: As regras de arredondamento entre os sistemas C e D são divergentes.
E supondo que a distribuição das discrepâncias de preços entre as três causas seja algo como representado no gráfico abaixo:
É evidente que as reais prioridades do projeto são: Causa 1, Causa 2 e Causa 3, nesta ordem. Talvez nem valha a pena atacar a Causa 3 se o custo marginal de retorno for maior do que o próprio retorno. Este tipo de análise tem que ser feito.
e. Um plano sólido para nortear a execução
Uma vez feito o trabalho difícil de compreender o problema em todos as suas dimensões, incluindo as divergências semânticas entre as áreas, as disfunções organizacionais e as reais prioridades estratégicas, montar um plano de execução sólido se torna uma tarefa relativamente fácil. A filosofia ágil pode prevalecer neste momento com o planejamento de entregas incrementais, e o aspecto de gestão de mudanças não deve ser negligenciado, já que estaremos mexendo nas estruturas organizacionais para alinhá-las com a nova realidade competitiva da empresa cliente.
f. Uma liderança forte
Por fim, para ter êxito na Complex Discovery e nas entregas subsequentes, uma liderança forte é imprescindível. A partir dos alicerces anteriores, podemos destacar na tabela abaixo algumas competências que farão toda a diferença na hora de entregar o projeto “complicado”.
Conclusão
A metodologia “Complex Discovery” foi desenvolvida para atender à necessidade de lidar com projetos "complicados" que não se encaixam nas abordagens ágeis tradicionais. Ao focar em uma compreensão holística do problema, alinhamento organizacional e prioridades claras, esta abordagem oferece uma solução estruturada para destravar projetos que, de outra forma, ficariam estagnados. Através de uma análise detalhada e de ferramentas de consultoria focadas, a Complex Discovery permite que as organizações identifiquem e superem os desafios únicos dos projetos "complicados", transformando obstáculos em oportunidades de crescimento e eficiência. Com esta metodologia, as empresas não apenas avançam em seus projetos “complicados”, mas também criam uma base mais forte para enfrentar futuros desafios.
*Por Youssef Bouguerra, fundador & CEO da Newstart.